Cultura

Uma mão cheia de nada<br>outra de coisa nenhuma

Manuel Augusto Araújo
No programa de Governo do PS, um capítulo é dedicado ao «Conhecimento e Cultura». O primeiro ponto é «Mais e Melhor Educação para Todos» e o quarto e último «Investir na Cultura». Se o título do primeiro deixa aparvalhado pelo descaramento, quem não perdeu a memória do que foram os últimos anos da educação, gerida pela sinistra equipa da 5 de Outubro, o título do último, «Investir na Cultura» faz rebolar de riso e lembra logo o ministro que dizia ir fazer mais com menos. Deixa logo aproveitada pelo seu colega das Finanças para dotar o MC com uma verba que era a menor que alguma vez um Ministério da Cultura teve para gerir e está ao nível do mais baixo dado à cultura quando ainda era só Secretaria de Estado. Claro que, em fim de legislatura, o 1.º ministro, atirando mais uma acha para a fogueira da propaganda em que se consome e confunde a governação, veio em pública jeremíada lamentar ter investido tão pouco na cultura. Ao ler esses títulos, assistir a essas cenas depois do que foram estes anos de governança, um único comentário: é preciso ter muita lata!
A leitura do texto programático confirma-o. Começa por garantir que a «cultura constituirá (…) uma prioridade no quadro das políticas de desenvolvimento, qualificação e afirmação do país», uma generalidade que, bem encaixilhada, fica bem em qualquer lugar da parede. Tem sido repetida em todos os programas eleitorais sem qualquer consequência relevante. Agora, mais uma vez afirmando querer atingir esse alvo, o PS desenha três compromissos: reforçar o orçamento da cultura, assegurar a transversalidade das políticas culturais garantindo a coordenação dos ministérios e departamentos envolvidos em, políticas sectoriais relevantes para a cultura, valorizar o contributo decisivo da criação contemporânea para o desenvolvimento do país.
Sublinhe-se que depois de, no programa eleitoral anterior, o PS reconhecer a asfixia que a cultura sofria por via dos limitados meios financeiros de que dispunha, traçando como objectivo alcançar a dotação orçamental de 1% do OE, agora o orçamento para a cultura é atirado para o nevoeiro sebastianista, dão-lhe a aspirina de um reforço desconhecido. Sendo a questão financeira uma questão central, dizer isto ou não dizer nada é a mesma coisa. Melhor fariam se ficassem calados.
A seguir garante-se a coordenação entre os diversos ministérios e departamentos para garantir a transversalidade das políticas sectoriais relevantes para a cultura. Não seria mau para estancar os dislates que se verificaram nos últimos anos, agravados com uma reestruturação do MC que reduziu significativamente a sua capacidade em cumprir incumbências e responsabilidades. O pior é que nada, mesmo nada, no texto subsequente suporta essa orientação. A única indicação é, nesse programa, a Cultura estar emparelhada no mesmo capítulo com a Educação, o Ensino Superior e a Ciência. O que se não é um mal não deixa de ser inquietante, quando a prática dos últimos anos mostra como a Economia, as Finanças, o Turismo, etc. arrombaram desarvoradamente as portas da Cultura, sem pedir licença ou opinião. Quanto à estrutura do MC o silêncio é brutal, o que faz pressupor que a intenção é continuar o caminho dantesco para o inferno.
Por fim a valorização da criação contemporânea, prometendo «o reforço dos apoios aos artistas e aos criadores, bem como às artes e às indústrias criativas e culturais». A ordem não é arbitrária. Quando se situam as indústrias criativas, seja lá o que isso for e o consenso sobre o seu conteúdo é objecto de inúmeras controvérsias, antes das indústrias culturais, que sofrem de problema semelhante, revela-se o deslumbramento bacoco pelas retóricas das modas e das tecnologias. É o refúgio para quem tem pouco de substantivo para afirmar e vive encadeado pelo brilho dos magalhães e os frufrus dos «desaines» de moda. Espremido todo o texto, para lá de generalidades que qualquer um subscreveria sem grandes exigências e convicção, conhecendo-se as práticas de asfixia económica, de destruição de organismos, de alienação de responsabilidades, de abdicação do poder de intervenção nas áreas da cultura do último Governo socialista que praticamente não cumpriu nenhum dos objectivos que propôs, o que temos é uma enumeração digna das Listas da Lavandaria de Metterling (*) em que aquilo a que eles chamam pomposamente criação contemporânea é um cacaquerejar de banalidades.
Este programa para a cultura inverte a história grega. É um copo de cicuta light que Sócrates oferece aos artistas e intelectuais que responderam ao apelo do PS e participaram no Fórum Novas Fronteiras. Deve-lhes restar a bruxuleante esperança de, se o PS for Governo, se cruzarem nos corredores do Ministério com alguém que lhes afague expectativas. Esperança frágil que incorre no equívoco de confundir o Ministério da Cultura com um Ministério das artes.
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(*) Listas da Lavandaria Metterling, in Para Acabar de Vez com a Cultura, Woody Allen, Bertrand Editora, 1989


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